Luiz Saraiva era um homem de muitas paixões, atividades e interesses. Tive contato com ele em várias ocasiões e em vários papéis, convivência que ajudou a moldar várias de minhas convicções pessoais sobre justiça, magistério, advocacia, política, maçonaria, liberalismo, tolerância, conduta profissional etc.
Para não ser enfadonho [demais], vou falar brevemente de três aspectos da vida e personalidade dele que muito brilhavam e que se mostram raras e necessárias. Até urgentes.
Luiz Saraiva foi político. Deputado Estadual constituinte. O que chamava atenção na atuação política dele eram os princípios que ele acreditava e que lhe pautavam a conduta. Não quero dizer que concordava com as ideias dele. É algo além. É fácil nos relacionarmos com quem tem ideias próximas, nas bolhas virtuais em que insistimos em viver e nos limitar. Difícil é cultivarmos ideias que nos permite ver o outro e tolerá-lo, aceitá-lo, mesmo que não concordemos com suas ideias, naquilo que Rawls denominou de pluralismo razoável. Luiz Saraiva se reconhecia como um liberal. E aí é fácil debater e dialogar com quem tem princípios na política, ainda que não concordemos com ele e com eles (os princípios). Porque sabemos que tal pessoa não se guiará por questões pontuais, pessoais, casuísticas, mas por um conjunto coerente de diretrizes e ideias que permite um diálogo frutífero. Pessoas assim não se vendem, não se compra: ou bem as convencemos pela força dos argumentos, e dela obteremos o apoio. Ou não.
Um outro aspecto que reluzia: a conduta dele na arena. Tive a sorte de como estagiário, servidor ou advogado neófito vê-lo em ação. Não me refiro à boa técnica por ele aplicada, à clareza das petições, à ausência de latinório ultrapassado, à objetividade. Não. Embora isso por si já mereça aplauso, quero mencionar outra habilidade dele: a forma de se portar diante de situações conflituosas e abusivas em audiência, diante de magistrados (de todas as instâncias), como vou dizer sem ser rude… bom: grosseiros, idiossincráticos, arbitrários (não é que existam magistrados grosseiros, idiossincráticos. Há pessoas assim, que se tornam julgadores, médicos, políticos, psicólogos etc.). Eu apreciava a forma como ele se saía. Não partia para o confronto, nem devolvia gritos e impropérios. Com o senso de humor que lhe caracterizava, ele dizia algo mais ou menos assim sobre esses confrontos: “cada um dá o que tem. Pérolas, diamantes, rosas; ou coices”. Ele respirava e criava uma situação onde o julgador respirava, voltando, ou possibilitando voltar, à razão. Mesmo que não funcionasse, não retorquia a afronta. Se o caso, recorria, aproveitando-se do absurdo da decisão ou postura do julgador. Era extremamente leal aos clientes, e não transigia com a defesa nem dos clientes, nem das prerrogativas da advocacia, mas desconheço alguma representação (reclamação formal) que ele tenha feito contra algum juiz, mesmo os mais autoritários. No final, a postura dele de calma e ponderação convidava a autoridade ao dever de urbanidade e, no pior cenário, mostrava quem honrava a toga. Ou a beca.
A terceira nuance: ao longo da vida, Saraiva debateu-se em várias causas, judiciais ou políticas. Ele viu amigos e clientes presos; alguns justificadamente, outros nem tanto. Presenciei ele obter vitórias retumbantes, ora contra minhas decisões, ora a favor delas. Mesmo eu sendo o autor de algumas decisões que afetaram pessoas amigas, nunca, em nenhum recurso, ofendeu-me. Insurgia-se vigorosamente contra a decisão e seus argumentos (não contra seu autor), naquilo que acreditava serem as falhas. Por vezes vencia; por vezes não. Mas a cordialidade sempre imperava. Esse mesmo proceder ele tinha perante a vida. Testemunhei ele na doença grave. Numa delas achei que não mais o veria. E eis que ele me surpreende na Justiça, não pelo uso da bengala, nem pelo corpo combalido, mas pela alegria, pelo otimismo e pela resiliência. A vida, dizia ele, havia lhe sorrido muito; mais até do que ele esperava ao lhe brindar com prosperidade, amor, filhos, netos e boa estima. Mas a vida também lhe deu dores, perdas, sofrimento, perdas e tristezas. Da maneira como ele aceitava estes, aceitava aqueles: com a serena resignação de que tudo passa. Um otimismo apoiado nem tanto nas circunstâncias e protagonistas, mas no porvir do ser humano e na crença, fundada ou não, de que podemos ser melhores do que nos apresentamos hoje.
Uma esperança contagiante, ele tinha, que fazia com que gostássemos dele, da companhia dele, do sorriso dele.
Ele acreditava no “Arquiteto do Universo”. Não sei se compreendo bem esse conceito. Mas gosto de pensar duas coisas, dentre outras: que só um arquiteto amoroso faria o traçado de minha vida cruzar com o da rica e intensa vida dele, em encontro que muito me enriqueceu e do qual muito aprendi; que ele será muito bem recebido pelo Arquiteto, pelo muito e pelo bom que fez da vida.
Jair Facundes é juiz do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1)