A data de hoje (23/11/2017) é digna de nota por trazer um significado simbólico e histórico na luta por direitos fundamentais e humanos da população LGBTI. A materialidade está na entrega do Estatuto da Diversidade Sexual, construído por muitas mãos e organizado pela Dra. Maria Berenice Dias, presidenta da Comissão Especial de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal). Por esse motivo, lanço este artigo para marcar esse dia jubiloso para os advogados e advogadas que lutam pelo respeito à diferença; pelo respeito a identificação sexual das pessoas; pelo respeito a auto identificação de gênero; e pelo respeito a Constituição Federal do Brasil.
No mundo, várias sociedades se (re) organizam em relação a sexualidade com base no binarismo, seja ela na questão de gênero (menino ou menina) ou, então, no quesito da orientação sexual (hetero ou homo). Qualquer outra realidade fora da demarcação binária é considerada uma “anomalia” que precisa ser corrigida. No entanto, frisa-se, a sexualidade comporta uma diversidade de características que merecem proteção constitucional sob pena de incorrer em severas violações das garantias e direitos fundamentais e humanos. Ou seja, há muitas formas de expressar a sexualidade fora da realidade binária como, por exemplo, a intersexualidade.
Pensar a realidade da intersexualidade é tratar das questões de gênero, pois cabe a própria pessoa, em respeito a autonomia e sua identidade sexual, se identificar da maneira que lhe faz feliz, dentro de sua subjetividade. Mas também, conversar sobre intersexualidade é tratar da orientação sexual, haja vista que os desejos e afetos podem ser direcionados para pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou para ninguém – sem descartar qualquer outra possibilidade não mencionada aqui.
Pode-se afirmar que a intersexualidade é uma identidade sexual diferenciada que não se refere, exclusivamente, as questões de gênero e orientação sexual. Mas a pessoa intersexo pode possuir um gênero e uma orientação sexual.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) trouxe, em seu relatório sobre a violência contra a população LGBTI, informações que demonstram que a temática das pessoas intersexo ainda possui uma invisibilidade nos países americanos. Um assunto tão importante que interessa não somente a medicina, mas também ao Direito e a Psicologia, entre outras áreas do conhecimento, não pode viver à margem da agenda oficial dos países que compõem a Organização dos Estados Americanos (OEA).
A ampla maioria das crianças intersexo não possuem complicações de saúde que coloquem em risco a própria vida. No entanto, no nascimento, motivados pela equipe médica, os pais são impelidos a decidirem por cirurgias genitais desnecessárias para “correção” do sexo da criança. O argumento médico é motivado por estereótipos preconceituosos que desrespeitam os direitos fundamentais das crianças, dentre eles o direito à integridade, ao desenvolvimento saudável e a identidade sexual.
Mas há dois exemplos de respeito aos direitos das pessoas intersexo que advém dos países americanos, dignos de serem seguidos pelos demais. É o caso do Chile que regulamentou na saúde pública normas e procedimentos que visam respeitar a autonomia, a identidade sexual e o desenvolvimento digno das crianças intersexo. “Se instruye que se detengan los tratamientos innecesarios de ‘normalización’ de niños y niñas intersex, incluyendo cirurgias genitales irreversibles hasta que tengan edad suficiente para decidir sobre sus cuerpos” e assim, nesses termos, restou definida a norma que orienta os profissionais chilenos em saúde.
O outro exemplo vem da Colômbia, mas nesse caso, a luta se deu no campo jurídico, mais precisamente na Corte Constitucional Colombiana. Desde a década de 90 que naquele país é proibido outra pessoa definir o sexo ou o gênero da criança, inclusive os pais, sob o fundamento jurídico do respeito à autonomia individual, ao desenvolvimento da criança e à identidade sexual. Pois, estamos falando de cirurgias irreversíveis e de uma decisão de cunho privado, ou seja, uma decisão tão importante deve ser tomada por quem realmente tem interesse e é afetado por tal decisão.
Nesse sentido, os pais, no entender da jurisprudência colombiana, não possuem o direito de escolher pelos seus filhos algo que desrespeita a dignidade da própria prole, ou seja, de outra pessoa. Em relação aos países americanos ainda há muito o que avançar no reconhecimento e no respeito aos direitos fundamentais da criança intersexo, tais como: a identidade sexual, a autonomia pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, embora o Chile e a Colômbia tenham firmado passos significativos para as garantias e a efetivação dos direitos humanos e fundamentais das crianças.
Não há um argumento minimamente defensável que justifique os juízos morais dos pais que decidem a suposta identidade sexual dos próprios filhos, pois, quem garante que eles não podem ser felizes na vivência diferenciada da sexualidade que possuem? É possível ter uma vida digna sem passar por várias cirurgias genitais, o exemplo vem dos depoimentos da audiência na CIDH no corrente ano.
A CIDH fez uma audiência pública no dia 20 de março de 2017 com a seguinte temática: “Situación de derechos humanos de las personas intersex en las Américas”.
Na própria audiência, pessoas intersexo se manifestaram afirmando que vivem uma vida digna com essa diferença sexual, por esse motivo, não desejam fazer (e não fizeram) nenhuma cirurgia genital “reparadora”, até porque não se repara algo que não precisa de reparos, já que a intersexualidade deve ser vista como uma expressão da diversidade sexual, em outras palavras, uma identidade sexual diferenciada que merece proteção constitucional como qualquer outra.
A mexicana Laura, em seu depoimento na audiência, relatou que foi diagnosticada com uma das variáveis patológicas (hiperplasia suprarrenal congênita) da intersexualidade com um ano de idade e fez todo seu acompanhamento médico na iniciativa privada do México. Foi possível realizar todo apoio médico sem necessidade de cirurgias que, diga-se de passagem, se apresentam desnecessárias e caracterizam-se como tortura e maus tratos. Nessa perspectiva se posicionam alguns juristas dos países americanos em sua carta pública intitulada“juristas contra la mutilación genital de personas intersex”.
Assim, visibilizar a temática da intersexualidade, retirando-a da discursiva marginal dentro do campo do direito, psicologia, medicina, ou qualquer outro ramo do saber é sobretudo um ato de resistência. É uma ação política que busca reconhecimento da condição humana que se apresenta na pessoa intersexo, fruto da diversidade sexual e não de uma patologia, como tem definido a medicina na maioria dos países, com raríssimas exceções.
Portanto, com base no relato pessoal feito na CIDH de quem vive a realidade intersexo, há vida digna sem as cirurgias genitais. Ou seja, é possível a pessoa viver uma sexualidade humana feliz diante da realidade da intersexualidade, sem realizar nenhum corte corporal, já que não se corrige o que não precisa de correção. Pois, no caso da intersexualidade, o que precisa mesmo é de RESPEITO, em especial à dignidade, à autonomia, ao desenvolvimento saudável e à identidade sexual.
Charles Brasil, mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Advogado e professor.